Sexta-feira, 29 de março
SEXTA-FEIRA SANTA – ANO B
Mc 15, 21-47
Com a liturgia do Tríduo Pascal, nos encontramos no auge da história da salvação. Convidamos você a reservar um tempo para estudar e rezar estes versículos da Palavra. A leitura das passagens de Marcos destes dias solenes está centrada na localização dos fatos, imersos na criação. Um olival, uma montanha e um jardim. Hoje estamos no Monte Gólgota, um lugar de tortura e morte. Encontramo-nos diante da história mais importante de todo o evangelho. Aqui, hoje, nesta montanha fora dos muros de Jerusalém, temos a oportunidade de encontrar o rosto de Deus. Ontem, no olival, Jesus nos ensinou a rezar. Hoje ele nos ensina a viver.
“Contar” (ou re-contar) a história hoje é uma tarefa impossível, então apenas sugeriremos algumas ideias e fazer um convite a desacelerar, a praticamente frear no dia de hoje e focar o olhar em cada versículo. Cada um deles merece um dia, uma semana de meditação silenciosa. Em cada versículo encontramos uma explicação de todas as Escrituras, dos profetas, da Lei, das cartas de Paulo, do Apocalipse, da patrística, da teologia medieval, do magistério da igreja, da Laudato Si’. Aqui encontramos a criação que nos fala desta morte, o céu que escurece, o véu do templo – feito por mãos humanas – que se rasga. Cabe a nós optar por fixar o olhar na glória de Deus, que hoje se manifesta neste corpo dilacerado pendurado na cruz, como faz o centurião, e sermos salvos; ou fazer como os sumos sacerdotes, os fariseus, os criminosos crucificados com ele e a multidão, que zombam dele, mas ainda assim são salvos pela misericórdia de Deus.
“Para carregar a sua cruz, eles requisitaram um transeunte que vinha do campo, Simão de Cirene”. A cena se abre com um imigrante, um “pobre homem” que voltava do campo, vindo da Líbia, da África. Quem carrega as cruzes, ou ajuda a carregá-las, nunca é rico ou poderoso, mas sempre é visto sob o olhar da inferioridade. E esse homem, apesar de tudo, torna-se um dos protagonistas da cena. Não é Simão, o discípulo sobre quem Jesus fundará a igreja, mas outro Simão. Discípulo involuntário, mas que seguirá os cristãos – aliás, mencionado na Carta aos Romanos com os filhos e a esposa Evódia, e citado no Evangelho de Marcos como pai de Alexandre e Rufo.
Quase sempre, no sofrimento, procuramos anestésicos. “Quiseram dar-lhe vinho misturado com mirra, mas ele não o tomou.” A cena de quando o despiram é comovente e humilhante, assim como quando “repartem suas vestes, lançando sobre elas a sorte”. A majestade de Deus está em não possuir nada próprio. “Com ele, crucificam dois bandidos, um à direita, outro à esquerda”. A cruz é a árvore que está sobre este monte; lembra-nos a árvore da vida rejeitada por Adão, cujo crânio é frequentemente representado ao pé da cruz. Jesus sobe nesta árvore da morte para regar este crânio com o seu sangue – crânio que, em última análise, representa a morte de cada um de nós –, para dar vida. Seu sangue rega o solo como o sangue de muitos mártires da ecologia que lutaram pela justiça social e ambiental. O sangue dos mártires é semente de cristãos, como diz Tertuliano. E naquele momento da glória de Cristo, dois criminosos estão presentes nos lugares ansiosamente desejados por Tiago e João, que queriam estar precisamente “um à sua direita e outro à sua esquerda”. Como precisamos aprender a rezar! Jesus está no meio, entre as nossas misérias, solidário a toda a humanidade representada à direita e à esquerda: aqueles que são malfeitores e aqueles que estão convencidos de que não o são.
Quanto nós, cristãos e cidadãos do mundo, temos que aprender desta imagem profética! Quando compreendermos que a verdadeira política não consiste em ocupar posições de poder a serem defendidas com cruzadas e partidos, mas em colocar o menor dentre os menores em primeiro lugar, ouvindo verdadeiramente o grito dos pobres e da terra, então poderemos verdadeiramente esperar um mundo melhor. Como é importante que os cristãos se comprometam com uma política profética! Se o nosso rei é Jesus crucificado, então realmente há esperança. É uma esperança certa porque junto com um mundo formado por uma minoria de reis que alimentam guerras, abusos e corrupção, ao longo da história o ser humano conheceu os direitos humanos, a solidariedade, a ecologia integral, construída por tantos ‘reis’ que escolhem, silenciosamente e todos os dias, colocarem-se a serviço dos outros.
“Os transeuntes o insultavam” junto com “os sumos sacerdotes e os escribas” e, mais ainda, “o injuriavam os que foram com ele crucificados”. Um coro unânime de críticas e insultos a este Deus que mostra a sua majestade no madeiro da cruz. E como esta palavra é atual: quantas críticas a este Deus que aceita o sofrimento, que assume as nossas cruzes!
“Ao meio-dia, houve trevas em toda a terra até as três horas”. A criação fala conosco. Diariamente. Mas hoje tudo assume um significado particular. Estamos numa noite que começa no olival de Jerusalém, pontuada por provações e ultrajes, pela confusão das ruas, pelo Monte da Caveira. Aparentemente estamos na sexta hora, a hora em que o sol está no seu ponto mais alto, hora de maior luz. Mas também é a hora da desobediência de Adão e Eva, do pecado como momento em que a criação se separa do Criador e quando Adão e Eva se escondem. A escuridão se esconde da luz mais forte. O fim do mundo ocorre no Monte Gólgota. O mundo do pecado termina. Não precisamos esperar outro fim do mundo: nos Evangelhos ele já está descrito aqui, com este eclipse.
“Eloi, Eloi, lamá sabactáni?”, que significa: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”. Depois destas últimas palavras não compreendidas por nós, homens, Jesus, “dando um grande grito, expirou”. Convidamos você a dedicar não um, mas dez minutos de silêncio hoje ao ler esta reflexão. Uma hora de silêncio, contemplando esta teoria, este “espetáculo”, com o tempo que merece.
Permaneçamos em silêncio diante desta imagem.
Ele entregou o espírito. Até Deus faleceu. A vida é inspirar e expirar. Ter pavor da morte equivale a ser insaciável: muitas vezes só queremos inspirar até explodir. Seguramos os recursos do planeta, os relacionamentos, o bem-estar e a nossa própria vida para nós mesmos, com medo de perdê-los. Deus, que criou tudo com uma ação de kenosis, despojando-se do seu infinito para deixar espaço às coisas finitas, nos presenteia com uma nova criação no despojamento da cruz. Um novo nascimento. Sem véus, Deus se revela a nós. Expirando.
A passagem se encerra espelhando a maneira como se abriu, com as categorias que presenciaram aquele espetáculo: o poder, simbolizado pelo centurião, e as multidões, ou seja, o povo. Os religiosos da época desaparecem da história; sua presença se perde nos acontecimentos desta nova criação. Um novo mundo começa, uma nova criação: “O véu do Santuário rasgou-se em duas partes de alto a baixo”. Rasga-se o véu que escondia o Santo dos Santos, Deus se revela, mostra o seu rosto. As águas se rompem, é um parto doloroso. Num outro evangelho, o de Mateus, também é pontuado que a mãe terra é dilacerada por terremotos: nasce o Filho “soltando um grande grito”, chamando o Pai. Um nascimento na dor e no pecado do mundo. Estamos convencidos, com as nossas categorias mentais, de que estamos testemunhando uma cena de morte, mas em vez disso é um nascimento.
“O centurião que estava em frente dele, vendo que morrera assim, disse: ‘Verdadeiramente, este homem era Filho de Deus’.” Uma frase que vem da observação e contemplação desta cruz. Quem diz isso é um homem que praticou o poder e a morte por profissão. Somos os algozes de Deus e, apesar de tudo, somos nós que podemos reconhecê-lo no rosto de quem sofre.
São Francisco, na maravilhosa paráfrase do Pai Nosso, nos lembra: “não nos deixeis cair em tentação: oculta ou manifesta, impetuosa ou inesperada; mas livrai-nos do mal: passado, presente e futuro.” (Fontes Franciscanas).
Agradeçamos ao Senhor pelo imenso dom da sua vida dada a nós e por nos ter ensinado que é possível seguir um caminho alternativo ao mal. Rezemos neste dia de silêncio para que esta nova criação possa ser para nós uma semente de conversão.
Laudato si’!